Moratória da dívida pública: o não dever e o não poder

Luiz Maia


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No famoso aforismo de H. L. Mencken (1880-1956), para todo problema complexo, existe sempre uma solução simples, elegante e completamente errada. Talvez o melhor exemplo do apelo dessa máxima entre nós é a recorrência das demandas por uma moratória da dívida pública. Presentemente, p. ex., a entidade “Auditoria Cidadã da Dívida” está patrocinando um abaixo-assinado justamente com esse objetivo, o qual já conta com mais de 20.000 apoios.

Outro exemplo é o programa do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), que defende com veemência o não pagamento da dívida pública.

Mais recentemente foram apresentadas as Emendas nos 87 e 29 às Medidas Provisórias nos 927 e 936, ambas de 2020 [1], de autoria dos Deputados Dagoberto Nogueira (PDT/MS) e Luizão Goulart (Republicanos/PR), integrantes de partidos com orientações ideológicas bastante diversas.

A primeira emenda decreta de modo direto que durante o estado de calamidade pública (…), fica suspenso o pagamento da dívida pública, interna e externa. Já a segunda estabelece que o Benefício Emergencial de Preservação do Emprego e da Renda será custeado com recursos da União, oriundos da suspensão imediata do pagamento dos juros e encargos da Dívida Pública, até o término do Decreto de Calamidade Pública.

Subjacente a essas demandas há a percepção de que a simples suspensão do pagamento da dívida liberaria recursos vultosos para outras políticas públicas. A experiência brasileira pregressa tanto na gestão da dívida externa como na gestão da interna já deveria ter demonstrado quão ilusórias são essas expectativas. E, no entanto, o apelo persiste. Mencken ficaria orgulhoso.

O presente texto aborda justamente sobre os empecilhos jurídicos (o “não dever”) e econômico-financeiros (o “não poder”) para a decretação de uma moratória da dívida pública brasileira.

Do Não Dever

As demandas tratadas anteriormente assemelham-se ao confisco decretado no âmbito do Plano “Brasil Novo”, implementado pelo Presidente Fernando Color em 16 de março de 1990. O plano em questão previa o congelamento por dezoito meses de 80% dos depósitos a prazo fixo, das letras de câmbio, dos depósitos interfinanceiros, das debêntures e os demais ativos financeiros, assim como os recursos captados pelas instituições financeiras por meio de operações compromissadas. Esses direitos passaram a ser atualizados monetariamente pelo Bônus do Tesouro Nacional (BTN), acrescido de 6% ao ano.[2] Ou seja, os prazos e as taxas contratuais foram redefinidos unilateralmente pelo Poder Público, o que ficou conhecido como “confisco”.

A esse respeito, em 27 de junho de 1991, ao tratar da medida cautelar demandada no âmbito da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 534-1-DF, o Ministro Paulo Brossard assim se manifestou acerca da retenção dos ativos financeiros.

Na mesma ocasião, o Ministro Néri da Silveira teceu as seguintes considerações sobre a cautelar que acabou negada pela maioria dos presentes.

Posteriormente, como notado pelo Ministro Sepúlveda Pertence em 26 de março de 2002, no âmbito do Recurso Extraordinário nº 252.866, o bloqueio imposto pela legislação que criou o “Plano Collor” acabou sendo considerado inconstitucional [3] por caracterizar empréstimo compulsório em desacordo com o disposto no art. 148, incisos I e II, da Constituição Federal.

Ademais, como recém apontado, é igualmente cabível o entendimento de que o bloqueio decretado violou o inciso XXXVI do art. 5º da Carta Magna, segundo o qual a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. A relação entre credores e devedores é um claro exemplo de ato jurídico perfeito, devendo, portanto, ser resguardada pelas normas supervenientes.

São ressalvas de ordem ética e constitucional cuja validade e aplicabilidade transcendem os limites daquele evento e que deveriam nortear qualquer discussão com teor semelhante nos dias que correm. Então, os argumentos dos Ministros Brossard e Néri acerca da cautelar pleiteada acabaram suplantados por juízos pragmáticos. [4] Hoje, é menos certo que uma Corte acostumada ao ativismo judicial fosse hesitar em fazer valer, em tempo hábil, a Constituição.

Do Não Poder

Do ponto de vista econômico, é estranho que alguns cogitem, justo neste momento, confiscar parte da poupança privada quando esta se faz mais necessária. É verdade que a receita tributária dos três níveis de governo diminuirá substancialmente em função do drástico arrefecimento da atividade econômica, mas isso é uma decorrência do próprio empobrecimento das famílias e empresas, impedidas de trabalhar normalmente. É sumamente contraditório que se discutam maneiras de minorar o impacto da pandemia sobre o fluxo de caixa das empresas e dos trabalhadores autônomos, até para que não haja uma piora dramática da taxa de desemprego, enquanto se cogita privar essas famílias e empresas das suas reservas financeiras.

No que tange às finanças públicas, é igualmente estranho que se pretenda suspender os pagamentos da dívida pública quando o setor público consolidado, especialmente o governo federal, apresenta déficit primário persistente e agora, com a nova crise, crescente. Isso significa não apenas que a dívida pública vem sendo paga com mais dívida pública, como que parte das despesas correntes, como salários e benefícios sociais, também está sendo paga com mais dívida.

A interrupção da rolagem da dívida passada não fará com que o déficit presente desapareça. O que acontecerá então? O governo pedirá novos empréstimos a quem teve parte dos seus créditos suspensos unilateralmente? Haverá, em meio a uma quase certa recessão, uma substancial elevação da carga tributária para equilibrar despesas e receitas? Recorreremos ao financiamento inflacionário? São escolhas difíceis que precisariam ser respondidas pelos proponentes dessa aventura.

Um argumento comum entre os defensores da moratória é que a dívida pública nunca foi auditada [5]. É importante frisar que essa afirmação não procede. Com efeito, além de serauditada pelo Tribunal de Contas da União (TCU) e monitorada pela Secretaria do Tesouro Nacional (STN) e pelo Banco Central do Brasil (BCB), órgãos com amparo legal e expertise técnico para isso, também o Congresso Nacional, no exercício das suas prerrogativas, já se debruçou sobre a dívida pública. Um exemplo é a Comissão Parlamentar de Inquérito sobre a Dívida Pública, mantida pela Câmara dos Deputados em 2009 e 2010, a qual contou com a assessoria técnica da Srª Maria Lucia Fattorelli, membro da “Auditoria Cidadã da Dívida”. Outro exemplo é a Subcomissão da Dívida Pública, organizada pela Comissão de Assuntos Econômicos em 2003. Os resultados dos trabalhos das duas comissões podem não ter tido os desdobramentos antecipados pelos entusiastas dessa causa, mas isso não basta para ignorar ou desqualificar o trabalho das autoridades competentes.[6]

Numericamente, a dívida pública federal, conforme o relatório da STN referente ao mês de fevereiro de 2020, alcançou R$ 4,3 trilhões, como apontado no quadro a seguir. Destaque-se a pequena participação da dívida pública externa – apenas 4,2% do total (ou R$ 181,1 bilhões). Como as reservas internacionais alcançaram US$ 362,5 bilhões em fevereiro de 2020 [7], conforme a última nota do BCB com as estatísticas do setor externo, eventual rompimento com os credores externos, além de bloquear o nosso acesso aos empréstimos com taxas favoráveis dos organismos multilaterais, poderia ser largamente compensado pelo confisco das reservas depositadas no exterior.


Fonte: Terraço Econômico

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